Publicado em: 14 de outubro de 2020 | Categoria: Planejamento

Luto: sinônimo de transformação

O impacto de uma perda não se faz igual para todas as pessoas e nem em todas as circunstâncias. Cada um sabe onde dói o que perdeu. A dor de uma perda é um sentimento singular. Não importa se foi seu amor filho ou filha, marido, esposa, amante, familiar distante, companheiro ou companheira, amigo ou amiga, irmão ou irmã, pai ou mãe. Não importa se foi seu animal de estimação ou um ídolo; quando o luto se instala é por que um vínculo de amor importante se rompeu. Sem o amor não há luto. Sem amor a morte passa despercebida. O luto só se dá sob uma base de amor, esta é a única condição para o enlutamento. 

A morte, já sabemos, é soberana. Sobre ela nenhum argumento perdura, é condição de vida, é inexorável a todo ser vivo. Podemos lutar contra, tentar esquece-la, desviar o assunto, mas ela faz parte de nós. E se por um lado nos assusta, por outro, pode nos ajudar a lembrar que somos finitos e, neste sentido, nos instigar a cuidar mais de nós e do que amamos e precisamos para dizer que vale a pena viver. 

Desajeitada, a morte, as vezes chega cedo demais e leva quem ainda estava por vir, os que acabaram de chegar ou estavam aprendendo a viver, os do meio do caminho, aqueles que estavam ao nosso lado a vida inteira. Leva aqueles queríamos eternos, os que fazem parte de nós e que não nos deixam esquecer quem somos, e que agora, sem eles, quem éramos. Até quando a morte chega em um tempo aceitável, diante das circunstancias da vida, provoca um certo estrondo e nos coloca diante do mistério que é o viver e o morrer, diante da nossa humanidade e finitude.

A morte acontece. O luto transforma o que a morte provoca. 

É preciso senti-lo não como o fim de uma história apenas, mas como o momento de se redescobrir sem alguém ou algo importante. O luto exige um tempo singular e por isso, não podemos reduzi-lo a dias, meses e até mesmo em anos. Pois o luto é processo e é experiência. É adaptação e ressignificação daquilo que ficou do que foi vivido. O luto, que acontece ocasionado por um fim, como no caso de uma morte, por mais absurdo que possa parecer – também traz em si um movimento de vida para quem segue vivendo. 

O luto dói, desestabiliza e faz chorar. Dispersa o pensamento, deixa sem sentido os dias e as vezes até a vida; dá um nó na garganta e um vazio no estômago, o luto passa pelo corpo, tira o sono e também pode provocar o dormir demais. Por vezes, é tão intenso que ocupa toda a energia; outras, se alonga tanto que parece não ter fim e exige uma força que nem era conhecida, para continuar vivendo. E se segue vivendo, por incrível que pareça, seguimos. Não mais como antes, mas transformados pela experiência do viver e do morrer.

Na travessia do luto e para viver o luto, é preciso entender o paradoxo de que quem morre segue vivo na lembrança, no sentimento, na saudade, naquilo que se é, pelo simples fato de se ter vivido um bom vínculo com que partiu. Existem marcas que não se apagam e são elas que permitem e exigem, que quem segue vivo se deixe transformar em nome do amor que perdura naquilo que já se foi. 

No entanto, para que o luto seja transformação de sentimentos, precisa da ação para que o que foi vivido não seja apenas uma fonte de tristeza e cabe ao enlutado dar um sentido ao que aconteceu, esta é uma tarefa intransferível. Reconhecer a perda, viver a dor, ser generoso consigo em suas necessidades, pedir ajuda, respeitar seu tempo, dizer não ao que parecer fora de compasso – são algumas maneiras de sentir como e de que forma se poderá seguir a diante. Cabe repassar a história considerando e reconsiderando o que foi bonito no viver e que vale permanecer, bem como, o que já pode ser deixado para trás, como parte do que foi possível ser feito e, em qualquer circunstância, ficar em paz com a história que se findou e não vai mudar.

Sabemos que este processo, que este percurso de enlutamento não é fácil, não é nada fácil. Abrir mão de um amor e mesmo assim seguir amando, é um exercício que requer muito investimento psíquico, que requer idas e vindas na história vivida, que tem altos e baixos como ondas no mar, que as vezes vem com força e arrastam tudo em seu trajeto e outras vem tranquila e só molham os pés de quem anda no caminho do luto. 

Quando dizemos que o luto transforma, é porque neste espaço de tempo de luto, quando a dor aguda vai acalmando, o que acontece não é um esquecimento, nem uma “superação”, menos ainda, um virar de página – o que acontece, é uma ressignificação de sentimentos. A dor se transforma em paz, a saudade pulsa sem machucar, as coisas do dia a dia tomam um sentido diferente – nem melhor, nem pior – diferente. E a vida que segue é calcada na experiência do que foi vivido, em amores que sempre serão presença em forma de lembrança, de história e de afeto. Por isso, homenagear os mortos é também revisitar a própria história, que uma vez escrita precisou ser transformada, para seguir amando para além da vida. 

 

Texto escrito: Ana Maria Dall’Agnese e Ângela Seger